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Bacabal,25/06/2025

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Raimundo Sirino

Adubo do bem: como bactérias ajudam pequenos agricultores a produzir sem poluir


Adubo do bem: como bactérias ajudam pequenos agricultores a produzir sem poluir Imagem gerada por Inteligência Artificial, pelo autor

A revolução invisível do solo

No subsolo das pequenas propriedades rurais brasileiras, uma revolução silenciosa está em curso. Invisíveis a olho nu, bactérias especializadas trabalham incansavelmente ao lado das raízes das plantas, transformando o nitrogênio do ar em alimento essencial para o crescimento vegetal. Esse processo, conhecido como fixação biológica de nitrogênio (FBN), tem sido redescoberto por agricultores familiares como alternativa natural ao uso de fertilizantes químicos, cujo preço disparou nas últimas décadas e cujo impacto ambiental se tornou cada vez mais insustentável.

Na natureza, o nitrogênio atmosférico é abundante, mas biologicamente inerte. As plantas não conseguem absorvê-lo diretamente. É aí que entram as bactérias fixadoras de nitrogênio, como as dos gêneros Bradyrhizobium, Rhizobium e Azospirillum. Ao se associarem às raízes das leguminosas, como o feijão e a soja, ou mesmo de gramíneas como o milho, essas bactérias realizam uma simbiose que beneficia ambos: o micro-organismo se alimenta de compostos orgânicos produzidos pela planta e, em troca, fornece nitrogênio assimilável, essencial para a formação de proteínas e clorofila.

A mais conhecida dessas associações ocorre entre a soja e o Bradyrhizobium japonicum, bactéria que já permite ao Brasil cultivar milhões de hectares do grão sem qualquer adubação nitrogenada industrial. Menos conhecida, porém igualmente eficaz, é a atuação do Rhizobium tropici no cultivo de feijoeiros ou do Azospirillum brasilense, que, ao colonizar o milho e o trigo, estimula o crescimento radicular e melhora a absorção de nutrientes. Esses micro-organismos, quando aplicados às sementes ou ao solo na forma de inoculantes biológicos, representam uma solução de baixo custo e alto impacto para agricultores de pequena escala.

O que para muitos ainda soa como novidade é, na verdade, parte de um conhecimento ancestral da natureza que a ciência moderna está apenas redescobrindo e aprimorando. No Brasil, esse resgate científico é conduzido por instituições como a Embrapa, que há décadas estuda e seleciona cepas bacterianas adaptadas aos diferentes solos e climas do país. A pesquisadora Mariangela Hungria, uma das referências mundiais no tema, defende que o uso de bactérias na agricultura familiar não é apenas uma alternativa ecológica, mas uma ferramenta estratégica de soberania agrícola.

À medida que o mundo rural se depara com os limites ambientais e econômicos da agricultura dependente de insumos químicos, o retorno ao solo vivo e microbiano aparece como caminho promissor. Essa revolução microscópica, embora discreta, já modifica práticas, reduz custos e fortalece a autonomia de agricultores familiares. Em vez de adubos que contaminam rios e aquecem o planeta, pequenos produtores optam agora por uma parceria biológica tão antiga quanto eficaz, e que pode estar no coração de uma nova forma de cultivar o futuro.

A força da ciência tropical

A transformação silenciosa que ocorre no solo das pequenas propriedades não é fruto apenas da natureza, é também resultado de décadas de pesquisa conduzida por cientistas brasileiros que decidiram olhar de perto o que antes passava despercebido. Desde os anos 1990, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) lidera esforços para compreender e aplicar o poder das bactérias fixadoras de nitrogênio nos sistemas agrícolas tropicais. Em um país marcado por solos pobres em nutrientes e pela pressão de produzir cada vez mais, a ciência brasileira encontrou nas bactérias um caminho para a produtividade sustentável.

No epicentro desse avanço está a microbiologista Mariangela Hungria, da Embrapa Soja, em Londrina (PR). Com mais de 40 anos dedicados ao estudo da fixação biológica de nitrogênio, Hungria tornou-se referência global em tecnologias de inoculação. Foi sob sua liderança que o Brasil desenvolveu algumas das cepas comerciais de Bradyrhizobium e Azospirillum mais eficientes do mundo, adaptadas às condições climáticas e aos tipos de solo brasileiros. Esses inoculantes permitiram, por exemplo, que o país cultivasse soja sem fertilizantes nitrogenados, uma economia estimada em mais de US$ 15 bilhões por ano.

A ciência tropical, diferentemente da ciência de bancada isolada, dialoga diretamente com a realidade do campo. Os estudos conduzidos pela Embrapa não se limitam aos laboratórios, mas envolvem ensaios de campo, escuta ativa dos produtores e adaptação das tecnologias a realidades diversas, da monocultura de larga escala às lavouras de subsistência. A introdução de inoculantes eficientes em culturas como feijão, milho e até pastagens tem ampliado o acesso dos agricultores familiares a técnicas antes restritas ao agronegócio.

Além do impacto produtivo, o uso de bactérias representa uma virada na economia dos insumos agrícolas. Em vez de depender da importação de fertilizantes nitrogenados, cuja produção é intensiva em energia fóssil e altamente concentrada em poucos países, o Brasil passa a contar com uma alternativa interna, renovável e de baixo custo. Essa independência bioeconômica fortalece especialmente os pequenos produtores, para quem o preço dos insumos muitas vezes representa uma barreira à continuidade no campo.

Na confluência entre ciência, soberania e sustentabilidade, a microbiologia agrícola brasileira torna-se um exemplo global de inovação alinhada aos desafios do século XXI. Ao contrário das soluções genéricas que ignoram os contextos locais, os inoculantes desenvolvidos por pesquisadores como Hungria partem de um princípio simples e potente: respeitar e potencializar a biodiversidade invisível do solo tropical. A ciência, nesse caso, não é um luxo — é uma ferramenta de libertação.

Um aliado da agricultura familiar

Em uma pequena propriedade nos arredores de Mossoró, no semiárido potiguar, o agricultor José Nilton observa com satisfação as fileiras de feijão-caupi florescendo sob o sol forte. Há dois anos, ele decidiu substituir o fertilizante químico por um frasco de inoculante biológico, contendo uma linhagem adaptada de Rhizobium tropici. Desde então, colhe mais, gasta menos e sente-se mais seguro frente às instabilidades do mercado. “Antes, eu dependia do adubo comprado na cidade. Hoje, as bactérias fazem o trabalho sozinhas”, conta, apontando para o solo arenoso onde tudo começa.

Histórias como a de José Nilton se multiplicam em várias regiões do Brasil. Em comunidades rurais do Paraná, da Bahia e do Pará, famílias agricultoras estão descobrindo que a solução para melhorar a fertilidade do solo pode vir de um frasco de custo simbólico, quando comparado aos insumos convencionais. A aplicação dos inoculantes é simples, pode ser feita na própria semente, com o auxílio de um pulverizador ou mesmo manualmente, e os resultados, visíveis em poucas semanas. Além do aumento na produtividade, há melhorias na estrutura do solo e na saúde das plantas, que crescem mais vigorosas e resistentes a estresses ambientais.

Para agricultores familiares, cujas margens financeiras são estreitas e o acesso ao crédito, limitado, o uso de bactérias fixadoras de nitrogênio oferece uma vantagem estratégica: reduz a dependência de insumos externos, quebra ciclos de endividamento e permite uma produção mais autônoma e sustentável. Essa inovação biológica também se encaixa com facilidade nos sistemas de agroecologia e produção orgânica, nos quais a química de síntese é restrita ou inexistente. Com isso, bioinsumos como os inoculantes tornam-se ferramentas de transição para modelos de cultivo mais resilientes e adaptados à realidade do pequeno produtor.

O impacto vai além da lavoura. Ao reduzir o custo de produção, os agricultores familiares conseguem reinvestir em outras áreas da propriedade, melhorar a alimentação da família e, em alguns casos, alcançar novos mercados, como feiras orgânicas ou programas de compra institucional. Essa nova autonomia reforça o papel da agricultura familiar como pilar da segurança alimentar no Brasil, responsável por mais de 70% dos alimentos consumidos no país, segundo dados do Censo Agropecuário.

Ainda que os inoculantes biológicos estejam mais presentes nas regiões sul e sudeste, onde a assistência técnica é mais estruturada, iniciativas públicas e comunitárias vêm promovendo a disseminação da tecnologia em regiões historicamente marginalizadas. Projetos de extensão rural, parcerias com universidades e programas de agroecologia têm sido fundamentais para garantir que os benefícios dessa biotecnologia não fiquem restritos às grandes lavouras. Nas mãos de quem planta para viver, as bactérias do bem não são apenas agentes biológicos, são também sementes de emancipação

Menos poluição, mais resiliência climática

Na zona rural de São Desidério, no oeste da Bahia, a agricultora Ana Cláudia notou uma mudança que não aparece nos olhos, mas se sente no chão. Desde que passou a usar inoculantes biológicos à base de Azospirillum brasilense, o solo de sua pequena propriedade ganhou nova textura, a água passou a infiltrar melhor e as plantas resistem mais ao calor intenso. “É como se a terra tivesse voltado a respirar”, diz. Sua prática local, quase silenciosa, ressoa hoje como parte de um movimento global de mitigação ambiental, em que a agricultura regenerativa ganha força como resposta às crises do clima e da fertilidade dos solos.

A produção e o uso de fertilizantes nitrogenados sintéticos estão entre os principais responsáveis pelas emissões agrícolas de óxidos de nitrogênio, em especial o óxido nitroso (N₂O) — um gás com poder de aquecimento global quase 300 vezes superior ao do dióxido de carbono (CO₂). Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 2% das emissões globais de gases de efeito estufa vêm apenas do uso excessivo de adubos nitrogenados. Ao substituir esses insumos por bactérias fixadoras de nitrogênio, os agricultores contribuem diretamente para reduzir as emissões e frear o avanço da crise climática.

Além da mitigação, a resiliência climática das lavouras também é fortalecida. O uso contínuo de fertilizantes químicos tende a degradar o solo, tornando-o mais compacto, ácido e menos fértil ao longo do tempo. Em contraste, as bactérias promovem a regeneração biológica do solo, melhorando sua estrutura física e sua capacidade de reter água e nutrientes. Isso é especialmente relevante para pequenos produtores em regiões semiáridas ou sujeitas a estiagens, como o sertão nordestino ou o cerrado brasileiro. A vida microbiana atua como um escudo invisível contra as intempéries do clima.

Estudos recentes mostram que o uso de bioinsumos pode melhorar significativamente o índice de matéria orgânica do solo, fator fundamental para a captação de carbono e para a longevidade produtiva das áreas cultivadas. Mais do que um benefício local, essa prática aponta para um horizonte estratégico de adaptação: fazer com que a agricultura familiar continue produzindo em cenários climáticos cada vez mais instáveis, sem depender de pacotes tecnológicos caros e ambientalmente prejudiciais. Bactérias, nesse sentido, tornam-se aliadas do clima, e dos que mais sofrem com suas mudanças.

O caso brasileiro, nesse contexto, oferece uma lição valiosa ao mundo. Ao desenvolver e aplicar soluções microbianas acessíveis, adaptadas a solos tropicais e a pequenos produtores, o país demonstra que é possível conciliar produção de alimentos com compromissos ecológicos reais. Em tempos de promessas verdes frequentemente esvaziadas por interesses comerciais, a adoção de inoculantes biológicos por agricultores familiares se ergue como um exemplo tangível de sustentabilidade enraizada, no solo, nas práticas e nas esperanças de um futuro possível

Políticas públicas e desafios de escala

No município de Arapiraca, no agreste alagoano, um grupo de agricultores familiares se reuniu para aprender a aplicar inoculantes biológicos em suas lavouras de milho e mandioca. O curso, oferecido por uma parceria entre uma cooperativa local e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), é parte de uma onda crescente de iniciativas voltadas à popularização dos bioinsumos no campo brasileiro. “A gente aprende, aplica, e vê que funciona. Só falta apoio para isso chegar a mais gente”, comenta seu Luís, agricultor de 62 anos. A fala resume o grande desafio que se impõe: levar a tecnologia microbiana para além dos bolsões de acesso já consolidados.

Embora o Brasil esteja entre os países mais avançados no uso de bactérias fixadoras de nitrogênio, a adoção ainda é desigual. Grandes produtores de soja e milho no Centro-Oeste e Sul do país representam a maior fatia do mercado de inoculantes. Já na agricultura familiar, sobretudo em regiões Norte e Nordeste, o acesso é limitado por fatores como ausência de assistência técnica, desconhecimento da tecnologia, dificuldade logística e pouca presença de políticas públicas específicas. Essa assimetria expõe a necessidade urgente de intervenção governamental estruturada e contínua.

Nos últimos anos, programas como o Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) e a Política Nacional de Bioinsumos (PNB) tentaram responder a esse desafio, criando marcos legais e linhas de fomento para produção e uso de alternativas biológicas. Em 2024, o governo federal anunciou incentivos ao desenvolvimento de biofábricas regionais e à capacitação de técnicos locais. No entanto, especialistas alertam: para atingir os pequenos, é preciso que as políticas públicas dialoguem com o cotidiano do agricultor, respeitem suas práticas e contem com parcerias com movimentos sociais, universidades e cooperativas rurais.

Outro ponto crítico é o da regulação e fiscalização. A produção de inoculantes biológicos ainda enfrenta gargalos burocráticos que dificultam o surgimento de soluções locais de baixo custo. Muitas comunidades rurais que desejam produzir seus próprios insumos esbarram na ausência de normativas específicas ou no excesso de exigências incompatíveis com sua realidade. O futuro dos bioinsumos depende não apenas de inovação científica, mas de desburocratização inteligente, financiamento público e valorização dos saberes populares.

A revolução microbiana no solo só se tornará verdadeiramente transformadora se for acompanhada de um projeto político coerente, que reconheça o papel estratégico da agricultura familiar na segurança alimentar, no combate à pobreza rural e na transição ecológica. Levar bactérias do bem aos campos do Brasil profundo não é apenas uma questão técnica: é uma escolha civilizatória. Porque democratizar a ciência é, também, plantar justiça social no chão fértil da biodiversidade invisível.

___________________

Raimundo Sirino Rodrigues Filho. Engenheiro Agrônomo, Pesquisador, Extensionista Rural e Professor Universitário. Graduado em Agronomia (UEMA); MSc. em Engenharia Agrícola – Irrigação e Drenagem (UFV) e DSc. em Agronomia – Solos e Nutrição de Plantas (UFPB).




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